
“É tempo de proibir as transferências para os offshores” Mariana Mortágua afirmou no Parlamento que o Governo que cortou salários e pensões e apoios sociais, e que desconfiou dos desempregados e dos mais pobres, foi o mesmo que “teve dúvidas” quanto à publicação de estatísticas oficiais sobre transferências para offshores. 2 de Março, 2017 - 10:09h
O Esquerda.net transcreve, na íntegra, a intervenção da deputada bloquista Mariana Mortágua:
Senhoras e Senhores deputados,
10 mil milhões de euros, ou seja, 80% de todas as transferências para offshores entre 2012 e 2014, saíram do país sem controlo ou verificação do Fisco.
Acham pouco, Senhores Deputados? É mais do que o Orçamento do Serviço Nacional de Saúde e o dobro do Orçamento da Educação.
E tudo isto aconteceu debaixo do nariz do mesmo Governo que perseguiu trabalhadores e pequenas empresas. O Governo que penhorou casas de habitação por incumprimento no pagamento de portagens. O Governo que andou obcecado a cobrar coercivamente o IUC de 2012.
E é legítimo perguntar: como é que um Governo tão alegadamente empenhado no combate à fraude e evasão fiscal, não deu por esta falha?
A resposta foi dada esta manhã por Paulo Núncio. O anterior Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não deu pela falta de 10.000 milhões de euros num total de 12.338 milhões transferidos entre 2012 e 2014 porque não conhecia as estatísticas. Porque nunca quis saber qual o valor das transferências, mas ainda assim tinha muitas dúvidas quanto à sua publicação.
E assim temos que o Governo que cortou salários, pensões e apoios sociais. Que desconfiou dos desempregados e mais dos pobres. Esse mesmo governo ‘teve dúvidas’ quanto à publicação de estatísticas oficiais sobre transferências para offshores.
E isto, Senhores deputados, é o retrato do Governo de PSD e CDS: fraco com os mais fortes e sempre forte com os mais fracos.
Vamos aos factos.
Na terça-feira da semana passada, o jornal Público traz a notícia: saíram, entre 2011 e 2014, 10 mil milhões de euros para offshores sem controlo da Autoridade Tributária.
No dia seguinte, em pleno debate quinzenal aqui na Assembleia da República, Passos Coelho apressou-se a negar responsabilidades e Assunção Cristas dedicou-se a fazer acusações sobre notícias plantadas nos jornais.
Foram precisos cinco dias, um desmentido do antigo diretor da Autoridade Tributária e outras tantas contradições, para que Paulo Núncio viesse desdizer o que disse e assumir a responsabilidade política pela não publicação dos dados.
A assunção da responsabilidade política era, aliás, a única coisa que Paulo Núncio podia fazer e só é estranho que não tenha sido imediatamente acompanhado pelos ministros a que respondia, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque.
Senhores deputados e senhoras deputadas,
Esta revelação, apesar de durar há pouco mais de uma semana, já produziu um momento memorável: a líder do CDS, Assunção Cristas, não só agradeceu em público o trabalho de Paulo Núncio, como teve o descaramento de dizer que o país muito lhe devia.
Conseguimos perceber que empresas que fazem do planeamento e evasão fiscal o seu negócio, entendam que devem muito ao governante Paulo Núncio. Talvez seja por isso que a Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Patrimónios elegeu Paulo Núncio “Personalidade do Ano” em 2016.
Não falam em nome de Portugal quando homenageiam Paulo Núncio. A República não deve nada Governo de PSD e CDS. Era o que mais faltava, muito menos em matéria de justiça fiscal. Muito pelo contrário.
Vejamos afinal o que ficou o país a dever ao mandato do PSD e CDS nas Finanças e nos Assuntos Fiscais:
O país deve à governação PSD/CDS o facto de terem saído pelas suas fronteiras 10 mil milhões de euros para paraísos fiscais, muitos deles não cooperantes, sem qualquer fiscalização, sem se saber se existiu qualquer crime ou se chegou a pagar impostos.
O país deve à governação PSD/CDS o escândalo da lista VIP, nunca devidamente esclarecido.
O país deve à governação PSD/CDS uma "unidade de grandes contribuintes" que servia mais de gabinete de apoio do que de órgão fiscalizador.
O país deve à governação PSD/CDS uma reforma do IRC, gentilmente oferecida por um conjunto de beneméritos, ligados aos sectores directamente interessados na facilitação do planeamento fiscal das grandes empresas;
O país deve à governação PSD/CDS algumas medidas que agravam o quadro de sancionamento da fuga fiscal. Mas também deve o Regime Extraordinário de Regularização Tributária (RERT III), uma amnistia para que todos legalizassem dinheiro que tinham colocado fora do país ilegalmente. Paulo Núncio não quis que alguém fosse apanhado de surpresa, e deu a todos a oportunidade de lavar legalmente o dinheiro escondido, pagando uma módica taxa de 7,5%.
Ou seja, devemos ao CDS e ao PSD o facto de a máquina fiscal se ter tornado numa máquina de injustiça e punição social sobre os mais fracos.
Senhoras e senhores deputados,
O problema é velho, as responsabilidades não vão para novas e, por isso mesmo, vamos às soluções.
Em junho do ano passado, há menos de um ano, o Bloco de Esquerda trouxe a este parlamento várias propostas. Uma delas é muito simples: proibir as operações para offshores não cooperantes.
Ou seja, acabar com as transferências para territórios que apenas servem de esconderijo para grandes fortunas, garantindo a fuga aos impostos, ocultando a proveniência de capitais e assegurando o seu branqueamento.
Perante esta proposta, o que fizeram PS, PSD e CDS? O mesmo de sempre: votaram contra, impedindo a sua aprovação. A cada novo escândalo, voltamos às velhas propostas e, a cada nova proposta, o PS, o PSD e o CDS repetem as velhas desculpas: que não é possível, que o problema é complexo, que um país não pode fazer nada sozinho e tem sempre que ficar à espera.
O argumento de que é necessária coordenação internacional para se fazer alguma coisa, por pequena que seja, senhoras e senhores deputados, é uma pura e simples desculpa para não fazer absolutamente nada.
E se a inação tem sido a regra, o Bloco propõe medidas concretas e hoje, aqui, assumimos o compromisso de voltar a propor a proibição de transferências para offshores não cooperantes.
Senhoras e senhores deputados,
A direita repetiu vezes sem conta que esconder dinheiro em offshores não é ilegal. Fê-lo para banalizar estas operações e assim justificar a sua inoperância.
Mas é exactamente aqui que está o problema: os offshores vivem na margem da lei, na sombra da legalidade. São buracos legais, criados para esconder as mais atrozes ilegalidades: da fraude ao branqueamento, do tráfico à corrupção.
A permissão da fuga, para além facilitar o crime financeiro, tem-nos imposto elevados custos. Ao assumir este modo de funcionamento da circulação de capitais estamos a legitimar e aceitar que, no jogo de quem baixa mais os impostos, de quem mais fecha os olhos, se instale uma corrida para o abismo. Perdemos todos.
E não esquecemos também que os offshores fazem sempre parte da história das crises bancárias e das onerosas faturas que deixam ao país.
Até hoje, não houve um único escândalo bancário que não tivesse tido a marca dos offshores: foi assim no BPN, no BPP, no BCP, no BES, no BESA e no BANIF.
É tempo de o país enfrentar o problema e de esta Assembleia da República ter a coragem de tomar medidas que fazem a diferença e proibir as transferências para os offshores. Essa é só uma das propostas do Bloco de Esquerda, mas é uma medida relevante, feita em nome de quem pagou com grande sacrifícios os efeitos de uma crise, enquanto os responsáveis desta crise escondiam as suas fortunas e os seus negócios em offshores.