Share |

A ética de Arnaut e o espírito do capitalismo

A ética de Arnaut e o espírito do capitalismo Durante esta semana, o poder económico mundial concentra-se num fórum - o Fórum Económico Mundial - para refletir sobre as formas de aprofundar a globalização e a desregulação dos mercados. 26 de Janeiro, 2018 - 11:00h Pedro Filipe Soares

Quando Thomas Mann escreveu A Montanha Mágica, estaria longe de pensar o que viriam a representar os arredores daquele sanatório que conheceu e retratou. Davos, na Suíça, era apenas uma localidade nas montanhas, onde se recolhiam os enfermos - como sua mulher, que sofria de tuberculose - para recuperar de doenças pulmonares. Contudo, hoje, a realidade retratada seria bem diferente. Durante esta semana, e como acontece uma vez por ano desde 1971, Davos torna-se o centro universal do mundo dos negócios. O poder económico mundial concentra-se num fórum - o Fórum Económico Mundial (FEM) - para refletir sobre as formas de aprofundar a globalização e a desregulação dos mercados. Perante esse desfile de riqueza, criou-se um corrupio de centenas de chefes de Estado e de governos, que disputam entre si uns minutos de atenção da plateia, procurando mostrar que o seu país é mais "amigo" do investimento do que os restantes. Esta ladainha é música para os ouvidos dos muito ricos e o desastre do desenvolvimento mundial. A semana de Davos nasceu assombrada pelas notícias das desigualdades crescentes. A sociedade mundial idealizada pelos participantes poderosos do FEM tem criado uma sociedade em que a riqueza se transfere cada vez mais para o topo da pirâmide. Os números da desigualdade mundial são gritantes: 42 pessoas detêm tanto dinheiro como metade da população mundial (3700 milhões de pessoas). E este movimento de concentração de riqueza tem aumentado ao longo dos anos. A Oxfam, uma confederação internacional de organizações não governamentais com rigor reconhecido, estudou a forma como a distribuição da riqueza tem evoluído. A conclusão mostra que a economia mundial está a falhar na resposta às necessidades das pessoas e apenas serve os interesses dos muito ricos. O ano de 2017 foi o mais desigual de sempre e, não por acaso, o que também bateu o recorde do maior aumento de bilionários da história. É este o mundo idealizado em Davos? Sim, é este universo de desigualdades, alicerçado numa economia completamente liberalizada, mercados financeiros sem regulação, direitos do trabalho terraplanados e recursos naturais rapinados. Algumas vozes mais meigas poderiam dizer que o problema se resolve com a inclusão de obrigações éticas na forma como se fazem negócios. E, possivelmente de forma inocente, iriam acertar numa das ironias da edição deste ano. É que há um distinto português que terá naquele fórum económico uma intervenção sobre "o papel da ética nos negócios". Para tamanha façanha quem poderia ser chamado que não um compagnon de férias de Miguel Relvas e Dias Loureiro? É isso mesmo, José Luís Arnaut poderá transmitir, porventura, os ensinamentos que essas referências mundiais da ética terão partilhado nos retiros de reflexão que o trio fez nos luxuosos hotéis de Copacabana. No que toca a ética, a história de José Luís Arnaut quase dava direito a cadastro. Ex-ministro de Santana Lopes, que ora no privado ora no público esteve em quase todas as privatizações, foi ainda assessor do banco Goldman Sachs no negócio da privatização dos CTT. Foi ainda representante do banco JP Morgan nas negociações dos swaps com o Estado. Creio que quem procura conselhos desta origem não procura mudar práticas, apenas lavar consciências. As perguntas de hoje são as fundamentais: queremos viver no mundo que Davos pretende para nós? Achamos inevitável que 80% da riqueza produzida em 2017 tenha ido para a 1% da população mundial? Acreditamos que continuar a reduzir impostos aos mais ricos (e suas empresas) irá melhorar a economia e reduzir a desigualdade? Consideramos aceitável que nos digam que vivemos acima das nossas possibilidades quando há 42 pessoas que detêm a mesma riqueza de metade da população mundial? É possível admitir que nos digam sempre que os direitos que nos protegem devem ser destruídos para defender a riqueza dos que nos atacam? As perguntas anteriores devem tocar nas nossas consciências. Não vivemos perante nenhuma inevitabilidade, nem na desigualdade, nem no modelo de desenvolvimento mundial. A ganância dos mercados financeiros e a avareza da elite económica podem ser contrapostas pela solidariedade dos povos para combater as desigualdades dentro e entre as nações. Nós, todas e todos nós, somos agentes dessa mudança que se precisa.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 25 de janeiro de 2018

Sobre o/a autor(a) Pedro Filipe Soares Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.