
De Alvito para a ribalta
Aos 26 anos já escrevia um livro com um Nobel da Economia, mas só aos 28 Mariana Mortágua se tornou na deputada de quem se fala
Inês Rapazote (artigo publicado na VISÃO 1137, de 18 de dezembro)
12:01 Quinta feira, 25 de Dezembro de 2014 |
Bastava-lhe ser filha de Camilo Mortágua - o revolucionário que participou no assalto ao paquete Santa Maria em 1961 e no desvio do avião que espalhou por Lisboa milhares de panfletos antifascistas - para ser conhecida. Mas Mariana não é de se encostar a louros alheios. Tem os seus, conquistados tão discretamente que até quando ultrapassou nove candidatos (da lista às legislativas) para substituir Ana Drago, no Parlamento, tornando-se a deputada mais nova do Bloco de Esquerda (BE) e do hemiciclo, a polémica deixou rapidamente de se fazer ouvir.
Mas a discrição tem limites e, um ano depois, o nome Mariana Mortágua (filha do revolucionário, não do PIDE, como gosta de referir) saltou mesmo para a ribalta. De há um mês para cá, foi numerosas vezes cara da semana e figura em alta, nos vários termómetros mediáticos. "É aproveitar, porque há de durar pouco", sorri. Foi dela a voz que se levantou contra a reposição das pensões vitalícias dos deputados e aquela que mais se tem destacado (pela pertinência e estudo das questões, Ricardo Salgado dixit) nas audições ao caso BES. É ela também a face do BE, nas questões económicas, desde a TAP à energia.
Mariana nem sempre foi de dar a cara - na infância, passada em Alvito, preferia pedir à irmã gémea, Joana, dois minutos mais nova mas igualmente bloquista, que fizesse isto ou pedisse aquilo; e chegava a ficar enjoada quando tinha de falar em público. Mas a herança genética é forte e a contestação corre--lhe nas veias.
Aos sete anos, já mobilizava tropas para pedir ao presidente da Câmara de Alvito que resolvesse o problema da passadeira junto da escola, recordou a sua mãe ao Expresso. Aos 15, inscrevia-se na ONG Ação para a Justiça e Paz e, pouco depois, mandava comida para o "Barco do Aborto", ancorado ao largo da Figueira da Foz. Foi a melhor média a entrar em Economia, no ISCTE, a melhor do curso e do mestrado. O doutoramento, vai ter de se ir fazendo, nos intervalos de tudo o resto. Confessa sofrer, ao pensar nos prazos, mas não consegue deixar de fazer mil coisas ao mesmo tempo. Sempre foi assim. Acabou o curso a trabalhar num centro de investigação do ISEG, fez o mestrado a trabalhar numa consultora (de onde se despediu por não acreditar no que estava a fazer) e no Parlamento. E, depois, ainda acumulou o trabalho parlamentar com umas aulas que deu no ISCAL.
José Gusmão nem a conhecia bem, mas não hesitou quando, recém-eleito deputado, precisou de uma assessora para as questões financeiras. "Ela já era militante do Bloco e intervinha sempre com muita competência. Algumas das qualidades que faziam dela uma boa assessora estão agora à vista, na comissão BES: tem uma grande capacidade de trabalho e de investigação, é muito metódica", desfia.
'New kid of the Bloco'
Foi na AR que Mariana conheceu Francisco Louçã. Hoje são bons amigos, trabalham bem juntos e até escreveram dois livros a quatro mãos. Mas não se considera sua "pupila" ou "delfim", como se diz por aí. "É exagerado", afirma, mas é coisa que não a incomoda. Ao lançar-se no doutoramento, não foi à porta de Louçã (professor de Economia no ISEG) que bateu. Desviou-se, antes, para Londres, para a SOAS (School of Oriental and African Studies, "a universidade mais de esquerda da Europa"), para ir atrás da orientação de Jan Toporowski, para a sua tese sobre Desequilíbrios macroeconómicos da União Europeia.
É rigorosa, exigente consigo própria, segura, focada, ponderada. Foi habituada a argumentar e a justificar cada posição e o seu empenho foi sendo reconhecido, embora ela justifique o seu percurso com as "oportunidades" que foram aparecendo. Ao chegar aos 26 anos, por exemplo, escrevia, a convite do jornalista financeiro Tony Phillips, um capítulo para o livro A Europa à Beira do Abismo, no qual também participavam um prémio Nobel da Economia (Joseph Stiglitz) e um ex-ministro das Finanças (o argentino Roberto Lavagna).
Hoje, entre o trabalho parlamentar, a comissão de inquérito ao BES, o doutoramento e a carta (faltam-lhe três aulas práticas para ir a exame de condução), Mariana não tem tempo para escrever livros... nem para ler. No pouco tempo livre que arranja, passeia ("esta cidade é linda!"), vai para os copos (cerveja, de preferência) com os amigos ou limpa a casa. A bicicleta está parada há meses (até já tem os pneus em baixo) e a equipa de futebol lá vai esperando pela sua avançada. Sabe que, quando pressionada, mais faz, e por isso vai-se inscrevendo em conferências e obrigando a fazer papers, que, depois, aproveita para a tese.
Assumidamente workaholic (embora tenha descoberto, recentemente, que "ser workaholic não é uma coisa boa e que não há problema em tirar um tempo para mim"), é do género de se fechar em casa a estudar dossiês. Foi, aliás, pela VISÃO que soube que ia ser vice-presidente da Comissão de Inquérito ao BES. Estava há horas a ler sobre o assunto que nem deu por ela...
Deita-se tarde e começa muito cedo. Vive a café e no medo de acabar a fazer qualquer coisa de que não goste. "Nunca precisei de trabalhar em call centres (como muitos dos seus amigos). Mas não sei o que o futuro me reserva." Faz parte da geração que cresceu a ouvir que era a mais educada, que havia "meritocracia" e a sentir na pele o que era a "competitividade". Mas que é também a mais "angustiada e frustrada. Por mais que se faça, nunca é suficiente".
Sente que tem sorte, por estar orientada. Tem, pela função que desempenha "por cidadania", um bom ordenado ao fim do mês, o que sabe bem, depois de ter sido "tão pobre", em Londres. Passa pelas comissões e pelo hemiciclo com ar simpático, sorridente, mas seguro. E com a responsabilidade de ir desconstruindo a linguagem mais técnica e o economês, para que todos os eleitores percebam do que se fala, naquela casa do poder. Quer acabar a legislatura "a fazer um bom trabalho" e com forças para se empenhar na campanha, por um Governo de esquerda. Com o PS? "O BE tem um projeto muito concreto. Não estou disposta a abdicar dele por um lugar no Executivo", diz, apontando os exemplos do Syriza ou do Podemos. "Votem em nós!", diz, convicta que é esta a vida que quer. O seu lugar na política (no BE) está conquistado. Há de acabar o doutoramento, para poder seguir (também) uma vida académica. Depois, é esperar pelas oportunidades e que a vida não a leve a emigrar.
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