Share |

Novo acórdão sobre violência doméstica gera críticas e indignação

Novo acórdão sobre violência doméstica gera críticas e indignação Um acórdão do Tribunal Judicial de Viseu, de 3 de outubro, põe em causa que uma mulher moderna e autónoma possa ser vítima de violência doméstica. O recurso, que deu entrada no Tribunal da Relação de Coimbra, acusa o juiz de deturpar prova com base em preconceitos. 10 de Dezembro, 2017 - 13:14h
O caso é divulgado pelo jornal Público, que relata que Susana saiu da casa onde vivia com o marido, Ângelo, no dia 7 de julho de 2014, e apresentou queixa por violência doméstica. Na sequência da denúncia, a GNR foi a casa do casal, tendo apreendido uma espingarda de caça e uma arma de ar comprimido, que pertenciam a Ângelo. Ficou ainda provado que Ângelo mandou inúmeras mensagens a pedir desculpa e perdão, telefonou, de forma insistente, para o telemóvel, para casa e para o trabalho de Susana e procurou-a em diversos locais. No âmbito deste processo, foi acionado o Sistema Nacional de Vigilância Eletrónica.

Não obstante os relatos de insultos, ameaças e agressões de vária índole, o juiz baseou-se na versão do arguido e das duas testemunhas apresentadas pelo mesmo, que admitiram que Ângelo agredia Susana mas que não era “a sério” e não era gratuito, ela também lhe dava beliscões.

A versão de Susana, da mãe e a das testemunhas por si apresentadas foram recusadas. Foi ainda descartada a gravação que o irmão dela garante ter de um telefonema em que Ângelo a promete nunca mais bater a Susana.

Ler também: Violência doméstica: Juiz alega cultura machista para atenuar penas dos agressores
O juiz acabou por absolver o arguido de dois crimes de violência doméstica, um crime de perturbação da vida privada, um crime de injúrias e o condena por um crime de detenção de arma proibida.

Entretanto, já deu entrada um recurso no Tribunal da Relação de Coimbra, que sinaliza erros na recolha de prova e acusa o coletivo presidido pelo juiz Carlos de Oliveira de deturpar prova com base em preconceitos.

Uma mulher moderna e autónoma não pode ser vítima de violência doméstica

A decisão do coletivo de juízes parece basear-se no pressuposto de que uma mulher moderna e autónoma não pode ser vítima de violência doméstica e de que, para provar uma situação de violência doméstica, é necessário apresentar prova de dano físico.

“Denotou em audiência de julgamento ser uma mulher moderna, consciente dos seus direitos, autónoma, não submissa, empregada e com salário próprio, não dependente do marido”, lê-se no acórdão, citado pelo Público (link is external).

“O seu carácter forte e independente foi mesmo confirmado por várias testemunhas [...]. Por isso cremos que dificilmente a assistente aceitaria tantos actos de abuso pelo arguido, e durante tanto tempo, sem os denunciar e tentar erradicar, se necessário dele se afastando”, sinaliza o documento.

“A senhora não tinha filhos, portanto, a primeira coisa que podia fazer era sair de casa”, lê-se, por outro lado, nas transcrições do julgamento.

Ler também: Acórdão machista motiva protestos em Lisboa, Porto, Coimbra e Évora
O juiz insistiu na necessidade da prova de dano físico: “O que temos aqui são episódios em que a senhora aparece com dificuldades respiratórias, com crise hipertensiva, palpitações (…) “Qualquer coisa a ver com o sono, depois tem realmente a questão do aborto que fez, tem depois problemas psiquiátricos também aqui com receitas desse teor, mas não temos um único elemento clínico no processo em que se a senhora se dirigiu por ter uma lesão física”, aponta o juiz.

O relatório médico sobre o sacro partido é descartado por falta de referência a agressões: “Se alguém me empurrasse pelas escadas abaixo e eu me lesionasse no sacro, eu faria certamente queixa contra quem fosse”, notou o juiz, que também não acreditou que o aborto que Susana provou ter sofrido tivesse sido provocado por uma agressão.

As respostas de Susana não mereceram credibilidade junto do juiz: “Confrontada com o facto de ser uma mulher autónoma e com salário proveniente do seu trabalho, não dependente do arguido, e mesmo assim ter-se — alegadamente — submetido a tantos episódios de violência doméstica durante seis anos, a assistente afirmou que tinha esperança que o arguido se mudasse”, lê-se no acórdão. “Confrontada com a ausência de qualquer queixa ou denúncia por violência doméstica praticada pelo arguido antes de ter saído de casa, declarou que tinha receio dele, e sentia vergonha”, acrescenta o documento.

Durante a sessão, o juiz ainda achou por bem interrogar Susana sobre a sua vida amorosa: “Tem algum namorado? E alguma vez teve alguma relação com um seu colega de trabalho?”, questionou.

“Processo está muito centrado na responsabilidade da vítima”

O acórdão já motivou inúmeras críticas e indignação.

Sofia Neves, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género da Universidade de Lisboa, docente do Instituto Universitário da Maia, e presidente da Associação Plano I, assinala que o texto, que "está carregado de estereótipos, de preconceitos” é "arrepiante", e que “o tribunal ignora a sistematologia psicológica, que é muito saliente”.

Ler também: Juízes assinam manifesto em defesa de autor de acórdão machista
A presidente da organização de mulheres UMAR partilha da mesma opinião: “É mais do mesmo. É a incapacidade de identificar os sinais, as dinâmicas da violência doméstica, as estratégias de manipulação, controlo, poder.”

Elisabete Brasil lamenta que este homem saia do julgamento “empoderado”: “A mulher, pelo contrário, chega ao fim desgastada, humilhada. O que se avalia não é se o crime ocorreu ou não, não é que estratégias são usadas para controlar e exercer poder sobre a vítima. O processo está muito centrado na responsabilidade da vítima”, vinca.

Isabel Ventura, investigadora da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, docente da Universidade Católica, e perita nacional no Observatório da Violência Contra as Mulheres da European Women’s Lobby, identifica no acórdão a ideia de vítima “submissa, dependente”. Ora, “a violência doméstica é um fenómeno transversal, que afeta pessoas de todas as idades, com os mais variados níveis de escolaridade, de todos os estratos socioeconómicos”, contrapõe.

Também Leonor Valente, membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, especializada em Igualdade de Género e Violência Doméstica, e coordenadora da Associação Projecto Criar — “denota grande ignorância” sobre as dinâmicas próprias da violência doméstica.

Artigos relacionados: