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Marxismo na actualidade

Camaradas,

 

Se vivesse hoje, o jovem Karl Marx não necessitaria de muito tempo para ver que a essência do sistema, que ele criticou no século XIX, mantém intacta a sua capacidade para alienar o trabalhador do homem que há em si. Simultaneamente, veria que os seus escritos de juventude não perderam pertinência. Escreveu ele:

 

«O trabalhador é a manifestação subjectiva do facto de que o capital é o homem inteiramente perdido para si mesmo, assim como o capital é a manifestação objectiva do facto de que o trabalho é o homem totalmente perdido para si próprio.»[1]

 

Volvidos dois séculos, o capitalismo continua a ser um sistema auto-referencial, que remete para si mesmo a dimensão existencial do homem. Tolera-se o homem na medida em que o trabalhador é necessário, pois, como também escreveu Marx, citando Eugène Buret: «O trabalho é vida e se a vida não for todos os dias permutada por alimento, depressa sofre danos e morre.»[2] A humanidade limita-se a servir um sistema de reprodução ao absurdo do capital, que dá sentido à sua existência apenas porque existe. Os neoliberais contrapõem com a racionalidade do mercado, com leis da oferta e da procura que determinam ou condicionam a contratação de mais ou menos unidades de produção. Ou, como Marx apontou:

 

«O trabalhador tornou-se uma mercadoria e terá muita sorte se puder encontrar um comprador. E a procura, de que depende a vida do trabalhador, é determinada pelos caprichos dos ricos e dos capitalistas.»[3]

 

Todos os dias assistimos a esses caprichos. A economia cresce? Os salários estagnam. Os CTT dão prejuízo? Os dividendos dos accionistas aumentam ao mesmo ritmo que se despedem funcionários. O Festival Eurovisão gera milhões em receitas? Um terço dos trabalhadores serão voluntários pagos com «t-shirts e diversão». Ninguém está a salvo de um sistema alheio a qualquer consideração humana. Nem mesmo os ídolos, sujeitos à crítica por excesso de humanidade: ao minuto 92 de um jogo em Alvalade, Gelson Martins marca um golo que permite manter o Sporting na luta pelo título. Retira a camisola e na outra lemos uma mensagem de apoio a Rúben Semedo. O árbitro mostra-lhe um cartão amarelo, que o impede, na jornada seguinte, de alinhar contra o Porto. Os comentadores indignam-se: como pôde ele ser tão parvo? Semanas depois, num jogo contra o Desportivo das Aves, Paolo Hurtado, do Vitória de Guimarães, faz o mesmo ao celebrar um golo com os adeptos, falhando a deslocação à Luz. «Como pôde ele ser tão parvo?», repetem os comentadores. Segundo eles, os jogadores têm de ser profissionais. O problema é que os jogadores, antes de serem profissionais, são pessoas dotadas de emoções. Novamente, a oposição entre o homem, que faz da amizade um valor, e o trabalhador, reduzido a mais uma unidade em campo na luta pelos milhões da UEFA. Mas Gelson pode ficar descansado: o futebol, tornado indústria «pelos caprichos dos ricos e dos capitalistas», precisa dele para entreter as massas.

 

Numa sociedade tornada em conjunto de pessoas que perseguem os seus interesses individuais, ninguém sabe ao certo para onde vai. A mentalidade de cerco impera. Basta, aliás, ligar a televisão: a propaganda dos vencedores e a banha da cobra dos vendedores sintonizam as pessoas no pensamento único. A Espanha é boa, quem dela quiser sair é mau; os patrões são sérios, por estarem dispostos a negociar, os operários são preguiçosos, porque não abdicam dos fins-de-semana; a OTAN garante a paz, a Rússia pretende a guerra; resgatar bancos diminui o risco sistémico, expulsar pessoas das suas casas é o preço a pagar por quem «vive acima das suas possibilidades». Todos os dias somos bombardeados pela retórica do medo: o perigo nuclear, a crise mundial, o aquecimento global. No entanto, ninguém diz como aqui chegámos. Ninguém diz que foi um país capitalista que criou a primeira bomba nuclear, que é o capitalismo o fabricante das suas cíclicas crises, e que será a superprodução capitalista a responsável pela destruição do planeta. Convém agitar o espantalho do comunismo, instruindo os povos na ignorância.

 

Nesta sociedade, que é cada vez mais um conjunto de pessoas, assistimos também ao triunfo dos sabotadores. Não tenhamos ilusões: surtos como o da legionella são o sintoma da demissão dos estados sociais das suas responsabilidades. Atacados por dentro, os diversos serviços nacionais de saúde estão sitiados pelos interesses de uns quantos grupos económicos. Surtos como o da legionella derivam assim da própria fraqueza dos poderes públicos, contagiados pelos germes das mãos invisíveis dos mercados. Manifestações desta doença fazem-se sentir em todo o tecido social, em sectores tão díspares como os transportes, a educação ou o mercado laboral. Numas, os parasitas são as parcerias público-privadas, noutras, as empresas de trabalho temporário. Em comum, têm a mediunidade, o surgimento de mais e mais obstáculos à resolução dos problemas de forma directa. O sistema, incapaz de prover a anseios humanos, ensaia a fuga para a frente, respondendo à luta de classes com a falta de diálogo.

 

Tentando fugir às responsabilidades, os sucessivos governos foram esvaziando os estados das suas atribuições originais. Muito cinicamente, afirmam hoje estarem de mãos atadas. Porém, esquecem-se de referir que são também os herdeiros daqueles que abriram a porta aos assaltantes, enquanto se fechavam numa gaveta. Entretanto, as PPP aí estão, como a cláusula que anula o contrato social firmado entre eleitores e eleitos.

 

No mercado laboral, temos as empresas de trabalho temporário. Produto tardio da constante segmentação do trabalho, que leva o sistema a maquinar novas formas de exploração, estas empresas foram feitas à medida das confederações patronais. Os mesmos que vituperam os sindicatos pela sua excessiva interferência no dia-a-dia das empresas, são os mesmos que transigem com práticas de extorsão aos trabalhadores. Hoje em dia, quando nos candidatamos a uma oferta de emprego, temos de passar pela empresa de trabalho temporário. Pouco importa se fomos nós quem contactou a firma para a qual queremos trabalhar. Para a nossa candidatura ser admitida, temos de ir falar primeiro com o parasita. Curiosamente, nunca ninguém se lembra de juntar o sindicato à conversa…

 

Para piorar a situação, temos hoje um conjunto de trabalhadores alheios a qualquer consciência de classe. Formatado no discurso do empreendedorismo, o proletariado virou colaborador no seu processo de exploração. Vemos isso quando os burgueses, sempre lestos a explorar as contradições do sistema, lançam trabalhadores do sector privado contra os do público, ou, na sua vertente geracional, os «novos» contra os «velhos». Os contratos a prazo costumam ser o objectivo desta quinta-coluna, que prefere expandir a precariedade em vez de iniciar uma luta sem tréguas nem termos que não sejam a estabilidade laboral. Essa mesma estabilidade que fortalece relações, faz nascer crianças e cria um futuro umbilicalmente ligado ao momento presente.

 

O jovem Marx sabia isso: enquanto estudava e escrevia a favor do proletariado, ligava-se a nós, que nos queremos ligar às gerações vindouras. Cabe assim a nós, através das nossas acções, manter a actualidade do seu pensamento.

 

[1] Marx, Karl (1975: 145) Escritos de Juventude (trad. Artur Morão). Lisboa: Edições 70.

[2] Marx, Karl (1975: 97) op.cit apud Buret, Eugène (1840: 49-50) De la misère des classes laborieuses en Angleterre et en France.

[3] Marx, Karl (1975: 85-86) op. cit.

 

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